Há um ano, era lançada a série Stranger Things. Acompanhar como esse programa chegou ao topo pode nos ajudar a compreender a produção cultural contemporânea.
Como uma série rejeitada mais de 15 vezes pela mídia tradicional conseguiu esse patamar de reconhecimento? A resposta padrão aponta para a análise da volumosa quantidade de dados que a Netflix coleta dos seus clientes. A própria empresa admite a influência dos números nas suas decisões. Segundo a Netflix, algoritmos representam 70% da equação.
A Netflix acrescenta, porém, que big data não é o único ingrediente para criar séries de sucesso. Apesar da soma elevada, decisivo mesmo são os 30% restantes: a curadoria humana, capaz de “saber que dados ignorar”.
A fórmula revela-se certeira, mas não infalível, como mostra a diferente aceitação das suas produções. Algumas se convertem em sucesso instantâneo, outras não obtêm a mesma repercussão.
Em muitos casos, a estratégia representa oferecer mais do mesmo. O que acaba gerando uma onda de nostalgia. Stranger things é bastante associada a produções dos anos 1970 e 1980.
Não para aí. No começo desse ano, Arquivo X voltou para uma nova temporada de seis episódios. Graças aos serviços de streaming de vídeo, resgates como esse tendem a ser mais comuns. Para Merrill Barr, comentarista de TV da Forbes, não é uma decisão artística, mas financeira. Geralmente a Netflix ou a Amazon fecham contratos generosos para garantir a transmissão da nova leva de episódios pouco depois da exibição na TV.
Os episódios antigos têm seu interesse renovado. Quem conhece a série quer resgatar o que é familiar e a atenção gerada pelo anúncio de novos capítulos atrai um público novato, grande parte dele constituído de pessoas que eram jovens demais quando a série foi ao ar inicialmente. A inclusão -ou renovação- da série no catálogo desses serviços vira uma nova fonte de renda para os estúdios. Um programa “morto” ressurge lucrativo.
Se grande parte do que é oferecido ao público recorre ao que as pessoas aceitaram anteriormente, produzir obras inovadoras seria um risco cada vez mais contornado pela indústria cultural?
A história do entretenimento está cheia de criações bem-sucedidas que foram consideradas previamente de difícil apelo. J. K. Rowling, a autora de Harry Potter, escutou muitos “nãos” antes de publicar seu primeiro livro. A Fox acreditava que Guerra nas Estrelas seria um fracasso tão grande que lançou o filme em menos de 10 salas de exibição dos EUA.
Hollywood também está mais atenta aos novos tempos. A popularidade nas redes sociais digitais vira fator importante na definição de elenco. Mas, no geral, o modus operandi de Hollywood está cada vez mais megalomaníaco. Predominam os blockbusters: continuações, refilmagens e obras derivadas (games, livros etc.). São grandes orçamentos, que dominam os cinemas, deixando pequeno espaço para obras de médio ou pequeno porte. Essas, para serem financiadas e distribuídas, dependem cada vez mais do aporte de produtores neófitos.
Como os serviços de streaming, ávidos por rechear seus catálogos com conteúdo próprio. Nesse ano, a Amazon e a Netflix foram às compras com entusiamo no Sundance, o maior festival de filmes alternativos do mundo. São obras autorais, criadas distantes da lógica das métricas. Netflix e derivados não buscam necessariamente retorno financeiro. Apostam na aclamação da crítica e em prêmios, o que traria mais legitimidade artística ao serviços de streaming. Se fracassarem, sem problemas. Afinal, esses filmes custam bem menos do que as grandes produções de Hollywood.
Muitos cineastas iniciantes ou independentes não questionam essa estratégia. Do contrário. Nos EUA, o objetivo inicial continua a ser a conquista de visibilidade num festival de cinema independente. O passo seguinte não é um filme, mas criar uma série para a TV ou serviço de streaming. Foi o caminho trilhado por Lena Dunham (do seriado Girls), Mark e Jay Duplass (do recente Togetherness) e Jill Soloway (da aclamada Transparent). Eles foram atraídos por orçamentos generosos. E liberdade artística.
Assim como qualquer boa receita culinária, o sucesso das produções artísticas não depende apenas do rigor em seguir padrões. Mas do tempero especial acrescentado à fórmula.